16.8.12

O relato da provocadora sobre o processo de trabalho

Vou falar um pouco do processo do trabalho dos 25 anos da Ginga, em "como" os intérpretes-criadores foram estimulados neste percurso. 

Fui convidada pela Renata Leoni para conduzir a criação de um espetáculo. Os criadores eram os próprios intérpretes, motivados pelo aniversário da Cia., pelo contato com o coreógrafo Chico Neller e por uma coreografia de 2004, o "Superfície do homem", que tem 4min de duração. O desafio era a partir destes temas criar uma obra de dança de aproximadamente 40 minutos. 

Acredito que tenha sido chamada para esta tarefa pela pesquisa que desenvolvi sobre criação na pós-graduação em dança. Também lido com criação diariamente no escritório de design, em uma perspectiva distinta, mas afinal estamos falando de uma ação só, e tão diversa. Dentro do conectivo de dança que faço parte, vivi experiências de criação colaborativas. Junte-se a isso a história de alguns anos dentro da Ginga (2001 a 2007), o carinho imenso por todos, principalmente pelo Chico e também o fato de ter participado da montagem do nosso ponto de partida, o "Superfície do homem". 

Tinha comigo alguns pressupostos para começar o trabalho: 

- Que era preciso começar amansando o medo sobre a criação. O ensino da dança, como a educação em geral no nosso país, estimula pouco a ação de criar. Temos os "passos" a serem repetidos e com referências claras do que é "certo" e "errado". Isso está mudando, mas os intérpretes deste trabalho ainda traziam o medo sobre a invenção. Era preciso mostrar na prática a ideia de que o próprio "refazer" pode ser uma criação, uma reconstrução. Comecei pedindo a eles uma composição feita de 5 movimentos que já tivessem dançado em ocasiões diferentes. Essa junção trouxe novas lógicas para o corpo, o que podemos chamar de uma primeira composição. Continuamos a partir de estímulos bem concretos, como utilização de partes do corpo, equivalências de movimento, qualidades diferentes, criando e recriando movimentos que foram preenchidos de novos entendimentos com o tempo. 

- Que a lógica do trabalho seguisse os conteúdos trazidos pelos criadores durante o processo. Essa construção era sobre o ponto de vista deles, e não meu. Eu funcionaria ali como uma provocadora (como diz a prof. dra. Ana Carolina Mundim). Por isso evitei ao máximo emitir opiniões, decidir caminhos e principalmente, evitei realizar movimentos com meu corpo como demonstrações. Também não dei aulas de dança como preparação física. Primeiro porque não é a minha especialidade, segundo para não dirigir a movimentação para um caminho específico. A proposta foi que todos os dias eles mesmos preparassem seu corpo para o trabalho, e buscassem cada um uma preparação. A Renata sugeriu que assim que vissem um caminho mais certo para a preparação daquele trabalho (poderia ser aulas de natação, luta, alguma técnica de dança específica..) que avisassem para poder tomar as providências de contratação de um professor. O processo foi então conduzido, além das tarefas que trazia diariamente, com perguntas, com histórias contadas a partir de situações surgidas, e trazendo conteúdo teórico a partir do que eles perguntavam ou haviam descoberto. As referências que levei como estímulo também foram a partir de conteúdo deles. Por exemplo, em uma entrevista com o Chico, ficamos sabendo que o seu estímulo para o "Superfície" foi o cuidado das suas irmãs com os cabelos. Assim, levei imagens de anúncios de produtos para cabelo como referência para uma das criações. 

Que o "Superfície do homem" era o nosso ponto de partida, e não o de chegada.  Eu também não sabia o que estava por vir. O que eu sabia era que criação é sobre alguma coisa que ainda não "é", e lidar com isso fazia parte do meu trabalho - com eles, a falta de costume gerou angústias e inseguranças. Tínhamos uma coreografia de base com elementos conceituais e estéticos muito claros, construída por um único coreógrafo, com uma história na dança amadurecida. Aqui, eram sete criadores em suas primeiras experiências com criação. Não fazia sentido, portanto, lutar para manter certos elementos conceituais e estéticos na nova criação. Pelos estímulos que levava, pelos temas que partiram e por todo o processo, invariavelmente o resultado estaria conectado ao "superfície", ao Ginga, e mais importante, a projetar possibilidades futuras para a Cia., objetivo primeiro do projeto que me foi apresentado pela Renata. 

Vou elencar aqui, de forma geral, os passos deste processo, para dar uma noção mais palpável do processo de criação:

1. Começamos por uma conversa e exercícios sobre criação:

EU NÃO SEI
tudo bem. criação é sobre alguma coisa que ainda não existe.
mas, o que fazer com isso?
proponho:


EU = características pessoais do criador, sua experiência.

NÃO =  aquilo que não é: o que já foi feito. Referências, pesquisa.

SEI = colocar-se no tempo-espaço presente para ação (tentativas, repetição, aprimoramento)


2. Partimos para um afinamento de vocabulário, a partir do estudo dos fatores de movimento do Laban (pesquisa da Patrícia Leal), misturado com algumas outras referências e pesquisas (viewpoints, corpo sujeito, corpo objeto, coreologia). Conversamos, passamos por pequenas vivências e criações de frases de movimento.

  • fluência: livre a controlada
  • espaço: foco e multifoco
  • peso: suave e firme
  • tempo: lento e súbito


3. Iniciamos um estudo sobre a coreografia “superfície do homem”, com as ações:
  • Assistimos o vídeo e discutimos as leituras possíveis, elencando palavras, impressões.
  • Elaboramos uma série de perguntas ao Chico, que foram sorteadas e respondidas por ele em uma roda de conversa.
  • Todos aprenderam a coreografia (a versão dos três intérpretes) para um entendimento maior (e corporal) da proposta iniciada em 2006.

4. Fizemos uma série de criações, a partir de aspectos diferentes de motivação, como:
  • tema (colhidos até aqui na nossa pesquisa)
  • imagem (trazidas ou surgidas a partir das pesquisas)
  • movimento (alguma pesquisa de movimento que queira ser iniciada)

Usamos sempre como apoio um “mapa” de possibilidades, com elementos como:

  • repetição
  • equivalência
  • resposta quinética
  • foco no tempo
  • foco no espaço
  • foco no peso
  • foco na fluência
  • inversão de fatores

E experimentamos criações em grupos, trios, duplas e solos.

5. Chegamos em uma proposta mais elaborada de criação, a partir de uma postagem do Gustavo no blog, sobre o tema “encontros”. Cada criador traz uma proposta, que pode ser composta com quantos intérpretes quiser. Para esta  proposta, foi necessário associar:
  • Uma referência em dança
  • Uma referência fora da dança (vídeo, texto, foto..)
  • Um referência sinônimo de “encontro” proposto pelo Gustavo: achar, ter contato, ir de encontro a, buscar, descobrir.

A proposta de composiçao precisa observar:

  • a relaçao espacial (entre indivíduos, com a sala)
  • partir de uma pesquisa de movimento específica
  • progressao de acontecimentos
  • observar o tempo (duraçao, ritmo)

6. Com um deadline estabelecido pela Renata para ver um resultado, fomos ligando as composiçoes em um único bloco.

7. A partir das observaçoes feitas por quem assistiu, fomos trabalhando aprimoramentos, principalmente:
  • elementos em comum entre as cenas, para entender melhor o que a junçao das composiçoes poderia nos trazer de discurso.
  • possíveis ligaçoes entre as cenas, a partir do entendimento de cada uma delas.
  • um olhar coletivo sobre cada cena, para que a composiçao final possa ser vista como uma construçao.
  • olhares repetidos sobre as composiçoes para o entendimento de cada movimento proposto nelas.

8. Com as "MOSTRAS DE PROCESSO", previstas no projeto elaborado pela Cia., pudemos ter contato com pessoas de fora, falando sobre o que viram. Os passos de olhar de novo para a construção e rever possibilidades foram se aprofundando com o passar do tempo. A repetição diária do ensaio e as novas noções que ela traz para o trabalho é o esforço diário para continuar entendendo a obra criada e também é o modo de mantê-la sempre atual.

É aqui que eu deixo a minha participação direta neste trabalho, sabendo que a criatura gerada pode ser conduzida por seus criadores e pela direção da Ginga. Com o tempo, fui me retirando, num processo inverso, até dando mais opinião sobre as coisas, justamente porque vi que eles não acatavam mais tudo que fosse dito. Brinquei com eles que eu tinha um "emprego suicida", que o meu objetivo ali era me tornar cada vez mais desnecessária. É um desapego cheio de recompensas, esse.

Agora vem à tona com mais força a parte do trabalho dos intérpretes, que são as mesmas pessoas que criaram, mas com diferença na perspectiva do contato com a criatura.
Foi uma experiência trabalhosa e imensamente compensadora. Temos um trabalho criado realmente por sete intérpretes da Ginga e tenho uma sensação de orgulho toda vez que assisto aos ensaios.

Quero agradecer a cada um da Cia pela experiência de crescimento que essa experiência me trouxe. Nos trouxe, crescemos juntos, né, cada um de um jeito, mas conectados. Eu tinha como objetivo pessoal mostrar o entendimento de que a criação é um ato natural de quem dança e possível. Espero que tenha conseguido, que levem isso adiante. Quanto ao resultado do trabalho, estou doidona pra ver em cena, e deixá-lo atravessar novamente a minha superfície.

Paula.

8 comentários:

  1. Que coisa linda.
    Muito prazeroso poder ler esse relato do processo e poder já sentir pelo menos um aperitivo desse trabalho, antes que a mágica ou o concreto aconteça diante de nossos olhos.
    Um trabalho dançado por esses interpretes-criadores que junto a esse olhar que provoca, mais que em suas palavras e realmente é parte desse parto (não mais poético e sim concreto, pois esse olhar está grávido.) que esta preste a ocorrer.
    Sucesso a todos e que venham mais 25 anos de ginga para esse estado, onde a cultura e seus fazedores tem que fazer ginga pra sobreviver.

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  2. que lindo paulinha.
    aprendi demais com vc e sua imensa paciencia e generosidade com esse trabalho e principalmente com tds nós.
    obrigada ;)

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  3. a presença da Paula é um privilégio mesmo.
    parabéns a todos.

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  4. Privilégio mesmo...
    com tantas provocações também estamos gerendo um filho.
    Estamos todos grávidos!

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  5. Gente,

    estava pensando muito no texto para o programa do espetáculo, sobre a importância desse trabalho para a dança local, para os criadores/intérpretes locais, para a arte local... enfim, para um aprendizado local e agora ganhamos este presente da Paulinha, não é perfeito para o programa do espetáculo?

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  6. a "paciência" é o exercício de entender o tempo do outro, né gente. olhando agora, o que parecia demoraaaado hoje parece rápido, pela consistência do trabalho. vocês abraçaram a causa, foi isso que deu vida ao projeto. o "risco" do trabalho não era "sair bonito" ou não, era se vocês se lançariam nessa "gestação" ou não.. agora, tem que reconhecer no cartório, dar banho, comida e acompanhar a criança, hehehe... né, Cibele?? (a Cibele engravidou no processo, como eu). estou com vcs, pessoal! fuerza!!

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  7. Obrigado Paulinha por estar conosco e conduzir com maestria o processo,agradeço pela compreensão, paciência,e provocações....
    A Certeza que tenho? Foram os 5 meses mais inquietantes e questionadores que vivi e ainda vivo .... " sinto" ( auto contato rsrs )
    "somos provilegiados"

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  8. Paula, que texto maravilhoso (:

    Não conheço muito do trabalho dessa Cia (nem o seu); mas estou encantado com suas palavras (que servem de muito para demais compositores e artistas).
    Se possível, eu gostaria de entrar em contato com você (email ou alguma rede, se possível). Espero que concorde.

    Muito obrigado.
    Lucas Roberto.

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