8.8.09

A Famosa Dança dos Famosos, na escola

A Famosa Dança dos Famosos, na escola
*Isabel Marques

E então, no final da tarde de domingo, milhões de lares são invadidos pela Dança dos Famosos, com curadoria e crítica de Fausto Silva – vulgo Faustão. No programa e nos milhões de lares brasileiros, famosos dançam suas danças. O título da atração dominical é uma pérola de dubiedade. Dança dos Famosos: quer dizer que é assim que os famosos dançam? Que essa é a dança de quem tem fama? Que a dança apresentada pertence aos famosos? Quer dizer que ser famoso implica dançar daquela forma? - As hipóteses se multiplicam e se revezam enquanto milhões de lares recebem a repetição mais ou menos graciosa de repertórios consagrados.
Os repertórios repetidos pelos famosos aos domingos são os que encontramos espalhados nas milhares de academias que trabalham as Danças de Salão. Mas há outro repertório, também veiculado por famosos, não raras vezes no mesmo programa televisivo ou em similares de mesma cepa. São as danças dos famosos que se espalham por milhões de corpos de crianças e jovens que desembarcam nas salas de aula  já com um modelo de dança preconcebido e uma forma de multiplicá-lo via cópia já instaurada, danças da mídia veiculadas por grupos, cantores e cantoras.
Não são poucos os professores e educadores que já tentaram trabalhar com a dança em suas salas de aula e obtiveram como resposta corporal dos alunos uma movimentação codificada, cheia de passos e movimentos copiados da TV. Aliás, segundo os relatos de professores e dos próprios alunos “são estas danças que a maioria dos alunos mais gosta de dançar” e, não raramente, demonstram isso com desânimo, desinteresse ou simples recusa às danças que não sejam as danças da mídia – descartando aqui, as respostas agressivas ou as que recorrem ao deboche simples.
Choque inevitável. Guerra declarada. O professor que deseja trabalhar com dança nas escolas - a sério - se sente compelido a partir para o ataque. Ou vence pela força, ou é vencido pela massa, a meu ver, nos dois casos, sai derrotado.
Ao invés de continuar atacando insanamente e menosprezando as danças da moda veiculadas pela TV, proponho aqui o desafio de abordá-las a partir de um olhar crítico, construtor de conhecimento e de propostas pedagógicas.
É claro que este assunto merece muito mais do que um curto artigo na internet, pois é complexo e tem muitas interfaces. Aqui, começaremos a pontuar algumas questões que certamente nos ajudarão a compreender e a eventualmente transformar as relações entre o ensino de dança nas escolas e as danças apresentadas aos alunos pela TV.
Talvez um bom começo para refletirmos sobre o fascínio das danças da mídia sem cairmos somente na crítica à indústria de consumo – que é necessária, sempre – seja justamente olhá-las sob outros pontos de vista e, a partir deles, elaborarmos outros processos de ensino-aprendizado de dança em nossas salas de aula.
Nosso primeiro olhar será o de encontrar nas danças adoradas pelos alunos os elementos que os atraem, as facetas que os fascinam, a “mágica” da mídia que muitas vezes supera com sobra os esforços de muitos professores conscientes, especializados, criteriosos, conhecedores da Dança e da Arte.
Para começar, o básico: afinal, do que será que as crianças e jovens gostam nas danças das mídias? Lembro-me bem de Pierre Babin, autor francês, que dizia: “faça com que gostem, para que depois aprendam”.
Em geral, as danças da mídia são acompanhamentos e ilustrações literais das músicas, as danças são simples, diretas - são “fáceis e gostosas”. Não discutiremos aqui o teor das letras nem mesmo a qualidade musical das mesmas, mas sim a facilidade e a gostosura em aprendê-las.
Quantas vezes, em situação escolar, dominada pelos horários, planejamentos, diários de classe, calendários e burocracias, o prazer é totalmente relegado a plano nenhum. Prazer do professor em ensinar, prazer do aluno em aprender e vice-versa. Prazer do professor e do aluno de... dançar!
Claro que uma visão crítica das danças da mídia nos leva também a outras leituras de prazer: por serem codificadas (passos prontos), enjaulam e castram os alunos de suas possibilidades criativas, de leituras de mundo, de ampliação de conhecimento. O prazer das danças da mídia é muitas vezes um prazer auto-imposto, um prazer superficial e por isso mesmo opressivo.
No entanto, não podemos deixar de enxergar que os alunos sentem prazer em dançar as danças veiculadas pela mídia. Prazer esse que em muitas aulas de dança “para valer” é enjaulado e castrado, também. Não cabe a esse curto artigo discutir a natureza desse prazer, mas sim a relação que as danças propostas pela mídia tem com o prazer corporal e com o prazer de dançar. Será preciso que cada professor questione essa componente de prazer na dança que está propondo aos seus alunos, antes de combater sua fonte segura de prazer vinda da mídia.
Há também a questão da identidade nas danças da TV: por serem moda, todos dançam a mesma coisa.  A moda e o modismo são imperativos sócio-econômico-culturais e devem, sem dúvida, ser discutidos com mais propriedade e profundidade. Mas é notório que uma das facetas encontradas na moda, no entanto, é a necessidade de pertencimento. Será que as crianças e jovens não vêem no aprendizado das danças da mídia uma forma de pertencer ao grupo, de construir uma identidade individual dentro do coletivo? – mesmo que saibamos da massificação ali presente, quem está na moda tem como resposta à sua necessidade de individuação o fato de não pertencer aos que não estão na moda.
Outro olhar para essa construção de identidades é a forma como as danças são aprendidas e dançadas: em grupo. Claro que esse “grupo” é muitas vezes fictício, pois o que há, num olhar mais apurado, é um conjunto de egos tentando dançar um melhor que o outro, sem uma visão ou um contato com o outro que permita uma relação significativa entre pessoas, entre cidadãos.
No entanto, quantas vezes nossas aulas de dança não são absolutamente individualizadas, individualistas ou individuais? O exercício de respiração individual, o plié na barra, a diagonal, o alongamento, a brincadeira com as formas que o corpo pode fazer na improvisação, os trabalhos “solo” de composição etc.
Quantas vezes a força do grupo é simplesmente ignorada nos processos de ensino-aprendizado de dança em prol do indivíduo solista! Na verdade, ao ignorarmos a força do grupo em sala de aula de dança, estamos também ignorando a força dos coletivos sociais, estamos estimulando as ações individuais e nos esquecendo de que “se cada um lavar o seu prato, a cozinha não ficará limpa”. Será preciso que cada professor questione essa componente de relação entre a individualidade necessária para o aprendizado da arte e o agrupamento inevitável para o aprendizado da cidadania.
Um terceiro ponto é o conceito de dança veiculado pela TV: dança é “coreografia”, ou seja, um conjunto de passos pré-estabelecidos e combinados entre si, com começo, meio, fim. Ou seja, a dança não é jogo, brincadeira, experimentação, exercício, a dança é finalizada, a dança é resultado. Ou seja, há a expectativa por parte dos alunos de que as danças sejam  produtos acabados, e não de jogos de improvisação, exploração de movimento, experiências somáticas, vivências sensoriais, exercícios de alongamento ou de força muscular.
Podemos discutir, claro, que este conceito de dança somente como resultado (“coreografia”) é, além de um conceito massificado e massificante, um conceito ingênuo de dança como arte. Reflete, também, desconhecimento da história da dança ocidental, das propostas pedagógicas para a dança nos últimos trinta anos: propostas em que o corpo lúdico, experimentador, sensível e que participa de processos é o corpo dançante em sua mais refinada acepção de dançar como forma de arte.
No entanto, se os alunos amantes da mídia entendem a dança como coreografia pronta, como um conjunto de passos, como produto a ser aprendido, não podemos deixar de levar isso em mais extremada consideração caso queiramos dialogar e dançar com nossos alunos telespectadores. Será preciso que cada professor questione essa componente de relação entre processo e produto em suas propostas pedagógicas  para que não alije das salas de aula a própria dança.
Partindo dessa primeira reflexão pontual sobre as danças da mídia, podemos perguntar: 
Será que não podemos em nossas salas de aula propor outras danças  – e não as cópias das patéticas danças da mídia -  que sejam: 1) fáceis e gostosas (isso não quer dizer bobas ou simplórias); 2) que identifiquem indivíduos nos grupos e que 3) tenham finalizações interessantes a serem compartilhadas com os outros?
Em outras palavras, não seria interessante como ponto de partida para o ensino-aprendizado da dança em nossas escolas partirmos do princípio do prazer de dançar, pensarmos na dança como um alicerce na construção de identidades e, finalmente, desenvolvermos processos que possam ser finalizados, compartilhados, comunicados em forma de construção artística?
Vale aqui o paralelo entre essas premissas iniciais e a dança em sociedade, ou seja, a dança fora da escola, a produção artística profissional: otimistamente o profissional é movido pelo prazer de seu trabalho e de sua profissão; toda e qualquer dança é uma construção sócio-cultural, ou seja, uma ação na construção de identidades; enfim, as danças apresentadas ao público em teatros, espaços de cultura, ruas, arenas e praças, mesmo que improvisadas, são escolhas finais compartilhadas, são escolhas de processos vividos pelos artistas que no ato da apresentação resultam em algo, apresentam resultados.
Assim, vale continuar perguntando: quando em nossas aulas de dança somos movidos pelo prazer de dançar? Qual tem sido a contribuição da dança na construção das identidades de nossos alunos? E, finalmente, quando é que a brincadeira vira dança? Quando é que os exercícios viram dança? Arte?

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