18.2.09

Ginga mergulha na ansiedade contemporânea das relações de amor

Por
Ricardo
Câmara*

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.

A emblemática poesia de Carlos Drummond de Andrade, que nos chega com os passos da Quadrilha a formar pares que se desencontram pela vida, vítimas do destino e principalmente dos valores trazidos pela Modernidade já não retrata os laços que tentam unir os casais contemporâneos. Já passamos pela liberdade da escolha amorosa, da idade do “não” sem culpa, do amor livre, do amor sólido, do para sempre. Os tempos são outros e as questões também são outras. Estamos na era do descartável, do sem-dono, do transitório, do virtual. Na era em que o “eu ti amu d+”, “eu queru vc”, “t doro mt” são expressões guardadas a sete chaves para o primeiro encontro, na net. O amor se derrama nas superfícies dos teclados e a caça pelo pleno torna-se um desvairio.

Um claro e belo retrato dessa busca por um sentimento fácil e rápido, fast-food, mas que complete e dê conforto é a obra Amor Líquido da Cia Ginga de Dança. O espetáculo concebido e coreografado por Chico Neller remete ao livro de mesmo nome do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, que levanta essas questões e aborda os motivos que levam as novas relações a serem tão fugazes.

No Amor do Ginga, três casais se encontram e se trocam freneticamente em variadas composições. O sentimento que se sobressai é a ansiedade, representada sobretudo na trilha sonora de Jonas Feliz. Os bailarinos Débora Higa, Gustavo Lorenço, Júlia Aissa, Julio César Floriano, Letícia Torales e Yan Leite Chaparro encontram uma medida dramática exata para executar as coreografias, que trazem a idéia do líquido também para os movimentos. Assim como nas relações narradas, os corpos também se diluem entre si, formando comunhões. Em uma cena há um longo e molhado beijo na boca. Em outra, o homem morde avidamente a mão de sua parceira, numa referência explícita à necessidade de se alimentar de outro.

As ações narrativas do Amor Líquido, como na vida, são simultâneas, de modo que fica a critério do expectador atribuir algum protagonismo. Tudo acontece ao mesmo tempo. Não há tempo. As pessoas tem sede e correm para saciar-se. Nessa busca, tropeçam, chocam-se, caem. O amor é dolorido como a dança é dolorida. Mas o equilíbrio e a beleza são preservados.

A estréia do espetáculo do Ginga ocorreu dentro do II Festival de Verão da Fundação Nelito Câmara, em Ivinhema-MS. O espaço escolhido foi a antiga Usina de Luz, um edifício emblemático, que contribuiu com sua história e grandes janelas para criar a atmosfera perfeita nesse amor de contradições. O arcaico e o contemporâneo foram valorizados pela iluminação precisa de Espedito Montebranco. E como dança contemporânea é feita no contexto real apresentado, nem as ótimas técnicas de improvisação de Denise Parra esperariam pelo providencial apagão na justa hora do coito. Cena que arrancou os aplausos mais quentes da platéia.

Nesta perspectiva sociológica e afetiva da dança, como instrumento de discussões pertinentes ao entendimento da realidade atual, o Ginga consegue fazer de seu espetáculo uma obra de arte completa. E o sentimento que levamos para casa é a inquietação e a sensação de que no nosso tempo a Quadrilha de Drummond, sairia mais-ou-menos assim:
João queria ser amado por Teresa, por Raimundo
Por Maria, por Joaquim, por Lili
João não se sentia amado por ninguém
* Ricardo Pieretti Câmara é jornalista, produtor
cultural,
presidente da Fundação Nelito Câmara e
Coordenador
do Festival de Verão de Ivinhema

3 comentários:

  1. Muito bom Ricardo, gostei bastante do seu texto, apresentando uma leitura particular e critica ao espetaculo...
    A indagação de hoje esta nesta fragilidade, alimentada por uma perversidade que corta o corpo suavemente...
    Nosso tempo esta cada vez mais, como você diz "descartavel" e "ansioso"

    valeu Ricardo...

    paz

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  2. uau, Ricardo, foi uma leitura impressionante! ai, quero ver de novo...

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  3. Caramba Ricardo! Gostei muito da sua interpretação do espetáculo!! Conseguiu expressar muito do que senti sobre o tema e deu sentidos que nem imaginava - extremamente sensível e sensato! (sensitive and sensible)
    Será que estas duas palavras também entram em conflito nessa "pós-modernidade líquida" em que queremos adentrar o misterioso e prazeroso mundo das paixões porém preservar a nossa individualidade e não-dependência?!
    Razão e emoção em containers que já não representam oposição ou contraste.
    Ansiosidade constante...
    Um abraço!

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