30.1.09

Nas gavetas do Ginga


Por Gisela Dória *

A primeira vez que trabalhei com o Ginga foi há tantos anos que começar um texto por essa data, pode provocar uma sensação piegas de nostalgia. Fato é que a minha cumplicidade com essa companhia, seja em sala de aula ou na platéia, é de longa data. 

Foi então com enorme alegria que recentemente recebi um convite um tanto inusitado: venha dirigir um trabalho nosso, me propôs Renata (ex-bailarina, hoje diretora do grupo). De cara, sem nem pensar duas vezes, disse que sim. No meio de um monte de trabalhos, estudos, pesquisa, filhos enfim, minha vida corrida, me vi envolvida em um compromisso com o grupo mais antigo e por que não dizer, mais respeitado do nosso estado.

Quando fui entender melhor o trabalho já existia, estava pronto. Foi coreografado e dirigido pelo “dono do pedaço”, Chico Neller. Além de ser o fundador da companhia, dirige e coreografa a maioria dos seus espetáculos. Agora essa! Envolvida em mais um trabalho no meio da roda viva desse final de 2007, tinha sido convidada para mexer no trabalho do dono...

No primeiro dia de ensaio,  assisti à Cultura bovina, o mais recente espetáculo do Ginga- Cia de Dança, que segundo Chico, precisava de modificações. Ele estava me dando carta branca para mudar o que quisesse. “O que eu quiser?” Sim, mais do que isso, me disse Chico, sob o olhar de seus bailarinos um tanto assustados: “você pode mexer nas minhas gavetas...”

Confesso que a principio tive um pouco de medo. Mas como  sou  virginiana e adoro mexer em uma gaveta,  logo vi que o desafio ia ser bom . De cara então, comecei a vasculhar a gaveta, e as gavetas que tinham dentro dessa gaveta, e os desdobramentos que cada bailarino tinha desse gaveteiro, e juntos, os cinco bailarinos e eu começamos a descobrir o que tinha guardado lá dentro.

A estrutura do projeto estava totalmente definida, havia uma historia, e todos sabiam as respostas de cada momento, de cada cena. Mas o que me perturbava, no que eu via não eram as respostas que eles tinham, mas as perguntas que eles faziam ou melhor que deixavam as vezes de fazer.

 Começamos então a rever as perguntas daquele processo, pedi aos bailarinos em nosso segundo ou terceiro ensaio que me trouxessem imagens. Imagens? Sim, qualquer imagem que tivessem vontade de compartilhar com o grupo. No ensaio seguinte, tive uma surpresa maravilhosa. O espetáculo fala de uma Cultura bovina, ruídos e sons, nos remetem a vacas, terra vermelha, poder, índios... E as imagens que eles me mostravam, cada um com a sua  imagem na mão, eram tudo menos clichês regionais ou ilustrações do que  se via em cena. 

A imagem que mais me tocou foi uma foto de um casal numa praia, de costas, caminhando ao mar e  segurando pelas mãos um filho pequeno no ar, Júlio (um dos jovens talentosos do elenco) me disse que escolhera aquela imagem porque era assim como ele se sentia naquele momento, seguro, de mãos dadas com os pais, mas no ar, lidando com o perigo, com o medo no corpo.

Essa imagem pra mim, é a melhor descrição de como um trabalho artístico deve acontecer, de mãos dadas com um grupo parceiro que confiamos, mas com um medo no corpo, um medo de cair, do desconhecido, das descobertas, mas feliz de se jogar.

E assim senti esses dias de parceria com  Chico, que gentilmente “ficou gripado”, e se ausentava da sala me dando total liberdade de experimentar pequenas mudanças em sua arte. Os bailarinos me deram a mão e foi um prazer poder jogar com um grupo tão corajoso, mais fácil ainda com uma trilha linda e uma idéia forte e bem plantada.

Cultura bovina é um trabalho de dança regional. Regional não porque fala de vaca, do pantanal, ou porque tem música da fronteira, é regional porque é feito por quem vive na região, por artistas que tentam sobreviver de arte onde a língua que se fala é a da soja, da arroba, do boi gordo. Arte regional sim, mas com um alcance universal, sem legenda, sem tradução.


* Gisela Dória é jornalista, bailarina, coreógrafa e professora de dança e pilates. Tem formação como professora pela Royal Academy of Dance – Londres, há 15 anos dirige sua escola de dança em Campo Grande e atua na direção de aulas de corpo e criações teatrais da OSCIP de arte-transformação Casa de Ensaio. Dirigiu cenicamente a Ginga Cia de Dança quando da produção do espetáculo Cultura Bovina?, de setembro a novembro de 2007. Atualmente, integra o mestrado em Artes Cênicas da USP, onde estuda a relação entre as linguagens da dança e do teatro.

4 comentários:

  1. Gisela, ler seu texto me fez ficar com mais vontade de conhecer esse trabalho...
    Um grande abraço a todos vocês e nos veremos em breve. (Flávia - Cuiabá)

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  2. Como é bom saber que existe pessoas sensíveis porém tão fortes e guerreiras,fazendo da arte da dança palavras que acreditem o corpo "pode" explicar.Parabéns,Chico Neller(meu ídolo viu!),Renata Leoni.Parabéns Grupo Ginga.
    Glaciony Grato

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  3. Não participei dessa vivência (infelizmente), mas lendo esse texto, minha cabeça e meu corpo puderam superficialmente beber um pouco no lago que eles puderam mergulhar.

    Paulo Paim

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  4. OLAAAAAAAA!!! Foi um prazer ter conhecido todos que faz a cia de dança ginga....
    foi otimo ter estado com vocês.....


    amei o espetáculo e também a oficina..........



    um abraço------------


    Renata Lima____________________


    Caruaru-PE

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